Cultura indígena viva na UFF
13/2/2015
Imagine os conhecimentos da academia e da cultura popular colocados lado a lado, em prol de uma arquitetura sustentável e mais conectada com a natureza. Mais do que imaginar, é possível ver a integração desses saberes na UFF, com o projeto Museu Vivo e Arquitetura Bioclimática (Maloca) como Saber Indígena. O trabalho visa à valorização dos métodos construtivos tradicionais indígenas e de suas manifestações culturais, com o objetivo de estimular o intercâmbio e o diálogo entre estudantes, arquitetos e pesquisadores com os agentes indígenas, permitindo atuarem como curadores, construtores e docentes.
Além de envolver o ensino de graduação e pós-graduação, o projeto integra pesquisa e extensão. Na Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (Proppi), foi oficializado com o grupo de pesquisa Transculturalidade e Paisagem, sob o título “Espaço Paisagem/Unesco (Museu Vivo): Requalificação da Paisagem da Baía de Guanabara”. E tem apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da Universidade de Paris 8 (Saint-Denis), por meio do programa de cooperação técnica A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana, firmado entre a instituição francesa, a UFF e a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. O convênio se dá por meio do Programa Capes-Cofecub (Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil). As duas entidades de fomento mantêm um edital que apoia o intercâmbio científico entre instituições de ensino superior do Brasil e da França para missões de trabalho e formação de recursos humanos de alto nível em ambos os países.
Coordenadora do projeto, a arquiteta e antropóloga Dinah Papi de Guimaraens, professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo (EAU) e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU )da UFF, destaca que o conteúdo teórico e prático se afina com a Lei nº 11.645, de 2008, que tornou obrigatória a inclusão, nos conteúdos didáticos, do estudo da história e culturas afro-brasileiras e indígenas. Além disso, a partir das recomendações da Unesco na
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas
, de 2007, o Ministério da Educação orienta para que esses saberes orais e tradicionais sejam considerados no mesmo patamar que os conhecimentos classicamente ministrados na academia.
“Ao concretizar esse projeto, a UFF se une a instituições como a Universidade de Brasília, a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal de São Carlos que, com uma ótica intercultural e transcultural dialógica, promovem a inclusão do indígena, tanto pela valorização das políticas afirmativas como pelo reconhecimento do saber dos índios na universidade”, apontou Dinah, citando como exemplo a disciplina “Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais”, ministrada por um docente índio Kamayurá na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.
Técnicas construtivas nativas como foco de estudo na EAU
Na UFF, o projeto realizou a construção de duas ocas no Campus da Praia Vermelha como protótipos da arquitetura bioclimática, inspirada em teóricos como Severiano Mário Porto, expoente da arquitetura regionalista. As aulas práticas foram ministradas em parceria com índios Guarani e de etnias do Alto Xingu (como os Kamayurá, Baniwa, Yawalapiti, Aweti e outros). Os nativos demonstraram as técnicas de arquitetura e o conhecimento necessários para erguer habitações típicas de cada tribo. “O objetivo foi trazer o saber indígena junto com a tecnologia do ‘homem branco’, fazer um intercâmbio; e a experiência da oca é um marco efetivo dessa importância da cultura indígena”, disse a pesquisadora Marina Vasconcellos, mestre pelo PPGAU e integrante do programa.
Dinah Guimaraens acrescenta que as ocas utilizaram duas técnicas construtivas distintas: a guarani tem uma estrutura de madeira de lei, eucalipto e caibros de madeira, com cobertura de sapê. Já a xinguana utiliza uma estrutura baixa de eucalipto, madeira de lei, um trançado de bambu e amarrações da estrutura feita com embira kamayurá e cobertura de sapê. “A maneira de colocar o sapê dos xinguanos é diferente dos guarani, pois eles dobram o sapê na estrutura de bambu e o tornam impermeável à chuva. É uma técnica milenar dos índios do Alto Xingu”, explicou.
A oca guarani ocupa um espaço ao lado do casarão da EAU e foi erguida ainda em 2011 para a Semana de Arquitetura e Urbanismo, evento paralelo à Agenda Acadêmica. A construção da segunda delas, a maloca xinguana, ocorreu como atividade da disciplina “Arquitetura Bioclimática Indígena” e integrou a programação do “Fórum Arte – Ação Transcultural II”, no Museu de Arte Contemporânea, em Niterói, em novembro de 2014. Está situada próxima à Ilha de Boa Viagem, no cruzamento das ruas Milton Tavares de Souza e Roberto Rowley Mendes, numa região de cota zero de construção (na qual não podem ser erguidos prédios). Tendo como referência as normas de preservação da paisagem legisladas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e pelo Ministério da Cultura, o projeto ergueu uma estrutura removível e não permanente, composta de elementos naturais.
A maloca xinguana deverá permanecer exposta até a metade deste ano e terá como ponto alto o Seminário Transculturalidade e Partilha da Verdade Universitária, entre os dias 26 e 28 de maio, quando será apresentada ao antropólogo francês Jacques Poulain. Professor emérito da Universidade de Paris 8 e presidente da cátedra de Filosofia da Cultura e das Instituições da Unesco, Poulain é membro do projeto-conjunto de pesquisa “A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana” e é uma referência no conceito de antropologia transcultural, adotado pela Unesco. No Fórum Arte, em novembro passado, além da realização de uma feira gastronômica e de artesanato típicas e da apresentação de performances de grupos indígenas, o artista plástico Duda Penteado pintou um painel em lona, o chamado mural transcultural, que deverá ser colocado junto à oca xinguana para a chegada de Poulain e a realização do seminário.
A oca foi erguida por cinco construtores do Alto Xingu, passando por rituais comandados por Sapaim Kamayurá, considerado o maior pajé do Xingu. Para cada etapa de construção, ele entoava rezas e cânticos acompanhados por flautas xinguanas, como forma de respeito aos antepassados nativos, e a fim de purificar e “abrir” os caminhos para a conclusão da obra. Para Sapaim, a escolha do local, de frente para a Baía de Guanabara, teve uma explicação espiritual. “Sonhei com o mamaé (espírito) d’Arariboia, dono dessa terra, que me mostrou o local onde ele queria a oca”, afirmou. Antes do desmonte, a edificação passará por novos rituais.
“Quando você trabalha com cultura indígena, leva em conta a cosmovisão, se despe do eurocentrismo e vê pela lógica do índio. Quando ele faz um estudo de território, pergunta primeiro aos antepassados daquela terra, para saber o que querem. Estabelece um ‘diálogo’ e presta conta para eles, porque os antepassados e os mais velhos são considerados professores para os indígenas. É um passado que é vivo. Por isso, é importante ter um entendimento e uma comunhão de vozes entre essas culturas e a parte acadêmica, levar tudo isso em conta”, argumentou Carol Potiguara, índia, historiadora graduada pela UFF e integrante do projeto.
Considerando o registro da Unesco, em 2012, do Rio de Janeiro e de Niterói como patrimônio de paisagem cultural da humanidade, a coordenadora Dinah Guimaraens e o grupo propõem um desdobramento do projeto, com a criação de um museu vivo: um espaço multiúso para abrigar a realização de oficinas, um visor de paisagem aberto ao público e a observação científica dos bens naturais e ambientais do entorno da baía. A proposta surgiu a partir do trabalho final de graduação em Arquitetura e Urbanismo da aluna Lisa Ferreira de Sousa. Em 2011, ela registrou os modos de vida e a cultura indígena na aldeia de Camboinhas, Niterói, e sugeriu a criação do museu contemporâneo na forma do universo guarani, visando ao intercâmbio da academia com os índios, que atuariam como consultores e colaboradores do museu. Segundo Dinah, é uma forma de estreitar o contato com os cerca de 35 mil indígenas urbanos que habitam o Grande Rio.
Acesse a prancha do Museu Vivo, que concorreu à 52ª Premiação Anual do Instituto de Arquitetos do Brasil.
Arquitetura deverá ganhar canteiro experimental para atividades práticas
Projetos como o Museu Vivo e muitos outros poderão vir a ser colocados em prática, quando a Escola de Arquitetura e Urbanismo tiver espaços mais apropriados para a execução de suas atividades práticas. O diretor da EAU, Werther Holzer, diz que o desejo de possuir um canteiro para a realização de experiências acadêmicas é uma reivindicação de mais de três décadas, desde quando o atual professor ainda era estudante de graduação na instituição. “O que queremos é formalizar uma prática que hoje ocorre informalmente e disponibilizar uma área onde possamos exercer essas atividades, em vez de usar pequenas áreas do entorno da escola, que não são mais suficientes e exigem o desmonte. Um canteiro experimental é fundamental para que os alunos vejam na prática como são utilizados os materiais, e pode envolver várias disciplinas, de graduação e pós-graduação”, afirmou Holzer.
Reconhecendo a importância de criar esse campo experimental, o chefe de Gabinete da Reitoria, José Rodrigues, diz que a UFF está montando uma comissão formada por três representantes da EAU, além de um membro de outros três setores – Reitoria, Pró-Reitoria de Graduação e Prefeitura Universitária – para analisar a questão. Ainda não há data para a conclusão dos trabalhos, mas a deliberação da comissão será submetida à aprovação do Conselho Universitário. Nesse espaço, seriam realizados protótipos e simulações de espaços arquitetônicos, servindo como prática para os estudantes. A intenção é, futuramente, entregar o local à Escola de Arquitetura e Urbanismo, para que o colegiado da unidade decida quais projetos terão condições de ocupar o espaço. O projeto do canteiro experimental se alinha à recente reforma curricular do curso, que prevê a criação de ambientes de expressão de diversidade arquitetônica, apresentando também aos alunos exemplos da chamada arquitetura bioclimática e de expressões culturais de moradias de diferentes povos, incluindo populações de origem africana e indígena.