Trote universitário: práticas
tradicionais convivem com
propostas culturais

8/9/2004

Bernardo Tonasse

Em fevereiro de 1999, durante o que deveria ser uma alegre interação entre novos e velhos alunos – um churrasco – morreu o estudante Edson Hsueh, recém aprovado no vestibular de medicina da Universidade de São Paulo (USP). O laudo da autópsia apontou asfixia por afogamento. Os suspeitos são seus próprios colegas veteranos.

Esse caso representa os extremos a que pode chegar a irresponsabilidade de alguns estudantes. Todavia, algumas formas de trote, ainda que não constituam crime, são constrangedoras para muitos jovens. Ter o cabelo raspado, ser obrigado a beber líquidos desagradáveis e ser enterrado até o pescoço: essas são algumas das histórias que povoam o imaginário dos calouros.

Trote da UFF não assusta

Dessa forma, as semanas iniciais na faculdade passaram a ser temidas por alguns jovens, que preferem não aparecer nos primeiros dias de aula – historicamente quando os trotes são aplicados.

Contudo, o trote da UFF não assusta tanto, onde a maioria dos calouros compareceu no dia 30, segunda-feira - início do semestre letivo. Segundo Ana Carolina Peixoto, recém aprovada no vestibular de Ciências Biológicas, isso se deve à imagem que os estudantes têm da Universidade. "Eu já sabia que o trote na UFF é mais cultural, por isso não tive medo", explica. Mesmo quem temia algum constrangimento sentiu-se aliviado, na sua maioria. Um exemplo disso é a caloura de Odontologia Michelle Gomes, 19. "Tive um certo receio, mas quando chegamos fomos logo tranqüilizados pelos veteranos", assegura. Os jovens seriam pintados e iriam às ruas pedir dinheiro para as festas de confraternização.

Entretanto, mesmo essa atividade tradicional – não só do curso de Odontologia, mas de toda a universidade - seria facultativa, diz Michelle. Afinal, nem todos apóiam isso. É o caso de Renata Moraes, 18, nova aluna da Faculdade de Direito. "Não darei trote quando for veterana. Acho um absurdo ter que recolher dinheiro", diz ela, que terá que arrecadar R$ 250,00 durante toda a semana. Quando perguntada sobre os trotes alternativos, como a Semana Acalourada, ela afirma, categórica: "Isso é que é trote de verdade".

Um exemplo de criatividade

De 30 de agosto a 3 de setembro, os alunos do Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS) da UFF deram aula de criatividade: a Semana Acalourada. Já são tradicionais as gincanas, oficinas, debates e atividades culturais organizadas pelos veteranos para recepcionar os novos estudantes; tudo com o objetivo de integrá-los à comunidade do instituto.

Para quem esperava um trote agressivo, essa foi uma grata surpresa. Gerson de Souza, 20 anos, aprovado no vestibular de Comunicação Social/Publicidade e Propaganda, conta que ficou bastante apreensivo enquanto vinha para o IACS: "Já ouvi muitas histórias. Um amigo meu contou que, na Rural (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), obrigavam os calouros a beber um líquido estranho. Fiquei com medo. Mas logo vi que não ia ter nada disso." O jovem, morador de Campo Grande, participou de um debate-trote organizado pelos veteranos, que encenaram uma discussão entre ex-alunos, agora profissionais da mídia. Terminada a palestra, a explicação: "Essa foi uma brincadeira, mas que ela sirva para vocês pensarem no papel social que terão como profissionais da comunicação."

Apoio institucional

Os alunos de Comunicação Social não estão sozinhos na luta pela eliminação dos trotes vexatórios. Vários outros cursos têm iniciativas semelhantes, e boa parte deles é amparada pela própria Universidade: É o Trote Cultural, surgido em 2001, que tornou a UFF a primeira instituição a agir formalmente para mudar o perfil do trote universitário. Isso ocorre por meio de incentivos a atividades socioculturais propostas pelos próprios estudantes, transformando-os em parceiros. O site do projeto (www.uff.br/trotecultural) explica a sua forma de atuação: "Ouvir os alunos, conhecer e apoiar as suas campanhas de trote, oferecendo-lhes serviços de programação visual, cobertura jornalística, material gráfico, transporte e principalmente apoio institucional são alguns dos recursos disponibilizados".

Em três anos de existência, foram doadas 42 toneladas de alimentos a comunidades carentes; 200 litros de sangue foram coletados para o Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap); 4 mil cartilhas educativas sobre meio ambiente foram distribuídas; mil crianças de escolas públicas tiveram orientação quanto à higiene bucal; 500 agasalhos e 496 livros foram doados e mais de 200 árvores foram plantadas.

O reconhecimento não tardou a chegar: em 2003 ficou entre os 30 projetos selecionados pelo Prêmio Cultura Nota 10, da Secretaria Cultura do Estado do Rio de Janeiro e, em 2004, foi contemplado com 2 prêmios oferecidos pela Fundação Educar DPaschoal relatados no livro Trote da Cidadania 2005.

Apesar dos números impressionantes, nem todos os cursos aderem ao projeto. Muitos diretórios acadêmicos ignoram o Trote Cultural, e outros simplesmente preferem continuar com o trote tradicional, às vezes até mesmo em concorrência com as recepções alternativas. Raphael Queiroz, membro do DA de Direito, afirma que isso acontece por causa de um único fator: a necessidade de arrecadar dinheiro para chopadas. "Nós, do DA, somos totalmente contra, mas infelizmente acontece, e às vezes tem gente que pega pesado", diz.

‘Excessos ainda acontecem’, dizem os alunos

"Pegar pesado" não é exclusividade do curso de Direito. Ainda que sejam exceções e obras de grupos isolados, os trotes vexatórios ainda são uma realidade para uma parte dos alunos da UFF. Eles ocorrem fora dos campi, o que dificulta a sua inibição pela faculdade. Uma aluna do terceiro período de Medicina Veterinária revela: "Os calouros de Veterinária são humilhados. São obrigados a gritar palavrões em público, a responder perguntas embaraçosas e até a carregar tijolos sobre os ombros." Ninguém é obrigado a participar, argumenta Márcio Andrioni, 23, do oitavo período. Contudo, a aluna afirma que isso não é de todo verdade: "Realmente ninguém é forçado a nada, mas os calouros são intimidados". Até Márcio reconhece o problema. "Sem dúvida! Sempre ocorre um terror psicológico".

Não existe polêmica em relação a trotes como o da Veterinária, pois a grande maioria repudia essas atividades. No entanto, a discordância é grande em torno do que deve ser feito para acolher os novos alunos. Há quem sustente que não existe problema algum com a coexistência do Trote Cultural e a brincadeira de pintar os calouros. Eles dizem que esta é uma tradição, e, desde que não haja constrangimento ou intimidação, todo mundo se diverte. Um exemplo disso é Camilla Alves, 19, aprovada para o curso de Ciências Biológicas: "Estou adorando! Tenho muito orgulho disso. Afinal, estudei muito para estar aqui pintada, e se pudesse reunia toda a cidade para me ouvir dizer: 'Passei!'", diz ela, com a pele e cabelos encharcados de tinta guache.




Foto: Bernardo Tonasse
Foto: Bernardo Tonass
Falso debate: trote criativo no IACS

Foto: Eduardo Heleno

Renata Moraes, caloura de Direito,
não pretende dar trote quando for veterana


Foto: Bernardo Tonasse

Trote com pintura ainda
persiste em alguns curso


Outros casos

O caso de Edson Hsueh não foi o único; outros calouros sofreram trotes violentos ao longo da história universitária brasileira: em março de 1980, na Universidade de Mogi das Cruzes, Carlos Alberto de Souza morreu devido a golpes na cabeça em um trote; George Parreira, 23, tem uma parada cardíaca enquanto fugia de um trote em Goiás (março de 1990); José Ricardo Ribeiro Pinto, 23, sofreu fratura na mandíbula durante trote na PUC-Camp, em abril de 1992; Ugo Boattini Jr., 19, abandona a Unesp - Guaratinguetá depois de ser agredido no trote, em março de 1993; Rodrigo Peccini, 19, foi internado por causa de queimaduras sofridas durante a "acolhida" aos calouros de medicina da PUC-SP, em março de 1998. (fonte: Folha de S. Paulo)