Entrevista: Mércio Pereira
Gomes
maio/2004
Mércio Pereira Gomes, 53 anos, antropólogo,
é o atual presidente da Fundação Nacional do
Índio (Funai). Professor dos cursos de graduação
e pós-graduação em Antropologia da Universidade
Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ. Mércio Gomes
avalia a situação atual dos povos indígenas e
alerta sobre a necessidade de demarcar e homologar suas terras.
Entrevista concedida a Fernanda Pimentel
O que é ser índio hoje?
Ao fazer uma reflexão sobre o que é ser índio
resgato um pouco da história desse povo guerreiro, com base
nos versos de Gonçalves Dias, o grande poeta da alma brasileira
e que buscou encontrar uma identidade para o Brasil. Diz a frase:
“Os índios foram instrumento de quanto aqui se praticou
de útil e grandioso. São o princípio de todas
as nossas coisas. São os que deram a base para o nosso caráter
nacional, ainda mal desenvolvido e será a coroa de nossa prosperidade
o dia de sua inteira reabilitação.” Na minha opinião,
ser índio hoje no Brasil significa sentir orgulho de um povo
guerreiro, que sempre defendeu suas terras e costumes, e que mesmo
diante dos desafios impostos pelo progresso, continua preservando
as tradições, transmitindo todo o legado de conhecimentos
dos antepassados aos mais jovens, na expectativa de manter viva a
cultura de cada etnia.
Atualmente, como está a situação política
e de subsistência dos índios no Brasil?
Os índios, em sua maioria, são representados nas aldeias
por caciques ou capitães, dentre outras denominações,
responsáveis por conduzir as reivindicações a
órgãos como a Funai, Ministério Público,
ministérios e outras instâncias governamentais e não-governamentais.
Quanto à subsistência, a maioria dos povos indígenas,
cujas terras já estão demarcadas e homologadas, vive
do plantio de roças e do artesanato. Em geral, os índios
plantam roças de mandioca, arroz, feijão e milho, produzem
farinha de mandioca e artesanato variado, conforme as tradições
de cada etnia. Em algumas áreas, ainda prevalece a prática
da caça e da pesca, mas em pequena escala, sempre com a preocupação
de se preservar o meio ambiente.
Os índios sofrem mais preconceito da população
rural do que da urbana. Por que isso acontece, na sua opinião?
Infelizmente, acredito que o preconceito em relação
aos indígenas ocorre no meio rural e urbano. No meio rural,
talvez em função das constantes disputas judiciais pela
posse de terras que anteriormente já pertenciam aos índios
e que hoje estão ocupadas por fazendeiros, o preconceito talvez
esteja mais enraizado. Tudo isso é muito lamentável.
Por exemplo, como podemos ter certeza de que o estudante indígena,
ao ingressar em um curso superior, também não estará
sujeito ao preconceito dos que vivem nas cidades? Sou contra qualquer
tipo de preconceito. Em especial, com os povos indígenas, em
função do que eles representaram e continuam representando
na luta e na defesa de seu povo e do nosso território.
O nosso país é muito grande e com diferenças
sociais, culturais e étnicas. Como se dão essas diferenças
nos nossos grupos indígenas?
São conhecidos hoje, no Brasil, aproximadamente 220 povos indígenas,
com culturas específicas e diferentes entre si e da sociedade
brasileira. Em muitos casos – aproximadamente 180 – estes
povos se expressam por meio de línguas também diferentes.
Essa pluralidade deve ser vista não como um obstáculo
ao desenvolvimento do país, mas como uma imensa riqueza cultural,
da qual todos nós, brasileiros, devemos ter orgulho.
Para assentamentos de terras, às vezes, são
necessários anos de engajamento por parte dos índios.
Isso pode agravar os conflitos. Como o governo pode agir para minorar
esses problemas?
Os índios sempre souberam como lidar com a terra. Na verdade,
eles conhecem toda a importância do território que tradicionalmente
ocupam para sua reprodução física e cultural.
Tudo isso é resultado de um aprendizado dos antepassados. Por
isso é que eles sabem quando é o período certo
para o plantio e para a colheita das roças. São ainda
profundos conhecedores da natureza, de seus mistérios, enfim,
são grandes poetas. Os conflitos, quando ocorrem, são,
em sua maioria, decorrentes do descontentamento daqueles que perderam
na Justiça o direito de continuar ocupando terras que pertenciam
aos indígenas anteriormente.
No site da Funai, o senhor foi firme em sua defesa pela obediência
aos direitos indígenas e pelo resgate da dívida que
o país contraiu com as comunidades indígenas desde o
processo de colonização e genocídio da raça.
De acordo com a Constituição Federal, quais são
os direitos que cabem aos índios? Como nós poderíamos
resgatar isso?
A Constituição Federal, no capítulo VIII, artigos
231 e 232, ressalta, dentre outros pontos, que aos índios é
reconhecida sua organização social, bem como seus costumes,
crenças e línguas, além dos direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo competência
da União proceder à demarcação. Acho que
o Brasil resgatará uma dívida histórica com os
povos indígenas quando consolidar o processo de demarcação
de suas terras. Tenho a convicção de que esse processo
estará concluído até 2006. Na minha opinião,
a demarcação e a homologação de todas
as terras indígenas são o nosso maior desafio. Atualmente,
75% das terras indígenas estão demarcadas, num país
que conta com 620 terras indígenas, uma população
estimada em 410 mil índios.
Como se configura a importância do índio na formação
do “caráter nacional”, evidenciada pelo senhor
em palestra, em abril deste ano, na Academia Brasileira de Letras
(ABL)?
Caráter nacional é a expressão usada por Gonçalves
Dias, em 1849, a qual citei na minha fala na ABL. Atualmente, deveríamos
traduzi-la para “sentimento de nacionalidade brasileira”.
Entretanto, na minha avaliação, essa questão
ainda está em formação. Uma das causas do não-reconhecimento
dos índios na formação da nossa identidade é
que, na visão dos nossos principais intelectuais brasileiros,
são os negros e os europeus os principais elementos dessa identidade.
Muito se credita verdadeiramente ao português e ao negro. O
índio ficou em terceiro lugar. Como se fosse um resíduo,
isto é, o que forneceu a matriz para os primeiros habitantes
e a formação das primeiras populações
e que deixou de ser interessante. Personalidades como o saudoso Darcy
Ribeiro – com quem tive a oportunidade de conviver durante anos,
um homem sempre dedicado à questão indígena –
também se sentiram angustiadas na busca incessante por descobrir
o verdadeiro espaço do índio na formação
do caráter nacional, o caráter dessa base popular que
nós herdamos. É nesse sentido que, mais uma vez, a poesia
de Gonçalves Dias contribui para consolidar a importância
que o índio tem na nacionalidade brasileira, pela sua trajetória
de luta.
O senhor suscitou o desejo de ver lançada a Enciclopédia
dos Povos Indígenas, uma obra reunida em cinco volumes com
toda a história dos povos que vivem no Brasil, com apoio da
ABL. Como será feito o estudo para a obra? Quais aspectos relevantes
serão destacados?
Considero a edição da Enciclopédia dos Povos
Indígenas de fundamental importância para que todos os
brasileiros tenham a oportunidade de conhecer a história, os
costumes e as tradições das inúmeras etnias.
Nossa proposta é que a enciclopédia seja referência
e fonte de consulta permanente para os mais diversos segmentos da
sociedade, disseminando as práticas e as tradições
de cada povo. O acervo também será relevante para estudiosos
da questão indígena.
Qual a sua avaliação do curso de Negociação
e Mediação de Conflito, promovido recentemente pela
Funai?
Acredito que foi importante para o corpo técnico de servidores
da sede da Funai, em Brasília, e das administrações
regionais nos estados onde há maior incidência de conflitos
que, em geral, envolvem ocupações de terras indígenas.
Embora tenham sido apenas cinco dias de atividades, o aprendizado
será fundamental para as atividades diárias dos servidores
da Funai nessas regiões. Eles também repassarão
os conhecimentos adquiridos aos demais colegas de trabalho, contribuindo
para o aprimoramento das ações e para a busca de uma
solução negociada dessas questões, sem a necessidade
do uso de violência ou situações de tensão.
O que o senhor quis dizer ao declarar que “os índios
são o presente. E digo mais, os índios são o
futuro do Brasil”, na audiência pública na Comissão
de Agricultura da Câmara dos Deputados, em Brasília?
Sempre digo que os índios são a nossa referência
como cidadãos brasileiros. Foram eles que aqui chegaram inicialmente
e protegeram nossas terras. São eles que hoje mantêm
vivos costumes, crenças e tradições de seus antepassados.
São eles que nos ajudam a manter vivas nossas matas e contribuem
para a preservação de nossos mananciais. Por isso é
que avalio que eles também são nosso futuro, principalmente
quando consolidarmos nossa maior dívida com eles, que consiste
na demarcação e homologação de todas as
suas terras. Isso significa não apenas um resgate e o pagamento
de uma dívida que está dentro do nosso ser. Mesmo as
pessoas que não são simpáticas à questão
indígena reconhecem que há legitimidade no índio,
no sentido de ter a sua terra. Isso se reconhece em seu ser poeta
e em seu ser de opinião pública, bem como no sentido
de que a conservação dessas terras nos garantirá
a preservação do meio ambiente por muitos anos.
Porque a revisão demográfica, segundo o senhor,
“é uma das surpresas da História”?
Calculo que os índios já somaram 5 milhões no
Brasil. Houve uma queda acentuada, o que fez com que essa população
tenha chegado a 120 mil, em 1955. Hoje, os índios são
410 mil, reconhecidos pela Funai, isto é, houve aumento acentuado
do crescimento dessa população. Em outras décadas,
acreditava-se que os indígenas desapareceriam e era com base
nesse pressuposto que a atuação do Estado brasileiro
era definida. Consciente da mudança desse paradigma, a Funai,
tenta realizar um censo indígena, com o apoio do IBGE, para
que possamos realmente conhecer quem é índio, o que
é ser índio e assim pautarmos nossa atuação
na garantia da defesa dos direitos desses povos.
O que fez os povos indígenas começarem a recuperar
sua população?
Os povos indígenas vêm crescendo e acho que tudo isso
é um grande resgate. Alguns crescem com um índice de
5% ao ano, em função, principalmente, da queda da mortalidade
infantil, da diminuição da morbidade e de uma série
de outros fatores como as doenças graves que não existem
mais, dentre elas, a varíola – que matava mais –
e o sarampo, atualmente sob controle. Considero que os índios
estão inseridos nesse novo papel de reconhecimento no Brasil.
Penso que a regularização das terras às quais
eles têm direito, aliada ao fortalecimento de projetos auto-sustentáveis,
constitui-se o caminho para a consolidação desse crescimento.
Assim, num futuro próximo, o país poderá se orgulhar
de ter contribuído para o equilíbrio em relação
aos povos indígenas. Quando o Brasil fizer isso, será
reconhecido mundialmente.
A vida é cheia de desafios. Quais os seus projetos
na presidência da Funai para melhorar a qualidade de vida dos
índios e superar esses obstáculos?
Além da questão da demarcação
e da homologação de todas as terras indígenas
do Brasil, existem ainda outras metas a serem alcançadas. Destaco,
por exemplo, o compromisso de implantar o Plano de Cargos e Salários
para os servidores do órgão, a realização
de um concurso público, com 500 vagas para nível médio
e superior, até o final do ano, ampliando o atual quadro de
funcionários, estimado em 2,1 mil, e o incremento de projetos
na área de educação e saúde indígena.
Também são relevantes as ações para a
implementação de projetos auto-sustentáveis e
de proteção do meio ambiente para os povos indígenas
e, principalmente, permanecer firme no propósito de lutar pela
defesa dessas populações que são o orgulho da
nação.
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